19/02/2011 - 11h
Cada vez mais brasileiros que nasceram com o vírus da aids chegam à idade adulta. Mas, ao deixar os abrigos onde passaram a infância e a adolescência, eles sofrem para se adaptar à realidade do lado de fora. A revista IstoÉ, desta semana, traz uma série de depoimentos onde os jovens descrevem as dificuldades enfrentadas por eles. Conheça a seguir a história da jovem Natasha Rebeca.
Despreparados para a vida
SUPERAÇÃO
Natasha foi adotada e está feliz. Mas casos como o dela são exceção
Natasha descobriu que tinha o vírus HIV aos 9 anos. Na escola. “Não cheguem perto. Ela é aidética”, gritou uma aluna histérica, durante o recreio. Apesar de não fazer ideia do que aquilo queria dizer, Natasha desconfiou logo que não era boa coisa porque seus amigos passaram a manter distância. No abrigo onde morava desde pequenina, na região metropolitana de São Paulo, ela havia aprendido apenas que tomava remédios constantemente para combater um “bichinho” que invadira seu corpo. Os remédios eram “do bem” e os “bichinhos” eram “do mal”. Natasha cresceu ouvindo que fora viver naquela casa diferente e cheia de gente porque não tinha família. “Eu me sentia estranha”, lembra. “Uma pessoa sem família não tem história. Não tem identidade.”
O cotidiano atípico incomodava Natasha. Ela compartilhava o quarto e as roupas com uma porção de meninas. Era obrigada a seguir uma agenda rígida e coletiva. Mesmo se não estivesse com fome, tinha de comer nos horários predeterminados. Mesmo se não estivesse com sono, tinha de se deitar junto com as colegas. As “tias” e os “tios” do abrigo, embora carinhosos e prestativos, saíam ao final do expediente ou desapareciam, caso arrumassem outro emprego.
Apegar-se àqueles adultos que iam e vinham, às vezes, doía. “Alguém sempre fazia tudo por nós. Arrumava a cama. Dava remédio. Lavava e passava. Colocava comida no prato”, afirma Natasha. “Tudo era muito dado porque ninguém imaginava que pudéssemos sobreviver. Fomos cuidadas para morrer em paz.”
Quando Natasha nasceu, em 1992, o número de abrigos para soropositivos estava em expansão no Brasil. Era uma resposta, urgente e necessária, de grupos religiosos e da sociedade civil.
“Ninguém queria ficar com essas crianças por causa do medo de infecção e porque não se sabia por quanto tempo viveriam”, diz a infectologista Marinella Della Negra, do Hospital Emílio Ribas. “Muitas ficaram órfãs, outras foram abandonadas em hospitais e acabaram na Febem.” De 1980 até junho de 2010, foram notificados ao Ministério da Saúde 19.203 casos de aids em crianças de até 12 anos. Assim como Natasha, nove de cada dez foram infectadas pela mãe durante a gestação, o parto ou a amamentação – na chamada transmissão vertical.
As estatísticas não detalham quantas crianças resistiram à enfermidade. Mas cerca de 60% dos brasileiros – de todas as idades – diagnosticados no mesmo período estão vivos. “Nosso país se tornou referência mundial no tratamento da aids, a transmissão vertical vem caindo e a sobrevida está aumentando nos últimos anos”, afirma Dirceu Greco, diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde. Entre 1983 e 2007, a probabilidade de uma criança estar viva cinco anos depois de descoberta com a doença saltou de 24% para 86%. “Hoje, não dá para estimar o tempo de vida que um paciente terá”, diz a médica Marinella.
Muitos abrigos realizaram um trabalho notável e ainda cumprem um papel social importante. “O problema é que abrimos casas de apoio, mas fomos frágeis na construção de outras possibilidades, como no processo de saída das crianças e dos adolescentes dessas instituições, no suporte familiar e na preparação dos jovens para o mercado de trabalho”, afirma a psicóloga Elizabete Franco Cruz, pesquisadora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. “Existe uma certa perversidade social porque damos um tipo de assistência que, muitas vezes, mantém essas crianças e adolescentes na posição de alguém que sempre precisará ser cuidado. Devemos lhes oferecer perspectivas de vida, de futuro e condições para que tenham autonomia.”
Elizabete relata que centenas de crianças terminaram abrigadas porque vigora no País a ideia de “família Doriana” e “nuclear”. “Onde estão os avós? Os tios? As famílias estendidas? Muitas vezes, os parentes e até o pai ou a mãe são vistos como incompetentes para assumir essas crianças. Temos de tomar cuidado para não idealizar a família nem o abrigo”, alerta a psicóloga. Pela lei brasileira, soropositivos ou não só podem ficar nessas instituições até os 18 anos. “Com 18 anos e um dia, o adolescente se vê sozinho”, diz Kleber Mendes, um dos coordenadores da Rede de Jovens Vivendo com HIV e Aids. “Então, ele percebe que não foi preparado para a vida real. Que não haverá ninguém para lembrá-lo de tomar remédio, que terá de trabalhar, ficar na fila do SUS. Como foi muito tutelado, em geral, não consegue tomar decisões básicas do dia a dia.” Kleber afirma que os jovens demonstram ter dificuldade de lidar com a liberdade total e repentina.
“Tenho vários amigos que sofreram ao sair do abrigo porque, lá dentro, vivíamos num mundo à parte”, conta Natasha. “No ano passado, dois se perderam totalmente, se envolveram com drogas e foram internados numa clínica de reabilitação. Outros, que saíram antes, morreram.” Natasha teve sorte porque foi adotada por uma funcionária do abrigo – com quem mantinha fortes laços afetivos – e se adaptou à família. Está feliz. Além de pai e mãe, ganhou dois irmãos. “Parece que eu nasci da barriga dela”, alegra-se Natasha. “Foi importante ter sido adotada com 16 anos. Meus pais tiveram de assumir certas responsabilidades, como me levar ao médico e assinar documentos da escola, porque eu era menor. Acho que se viesse agora, com 18, não me sentiria filha deles. Seria como vir só porque não tinha onde morar.”
A rotina de Natasha foi entrando nos eixos devagar. Atualmente, além de estudar artes cênicas e dar aula de teatro numa ONG, ela está correndo atrás da papelada para botar os pais adotivos na certidão de nascimento e mudar de sobrenome. Em breve, excluirá Ferreira Braz e se chamará Natasha Rebeca Gimenes Nascimento.
“Rebeca é um nome bíblico e foi escolhido pela minha mãe”, conta. Natasha só soube aos 7 anos que tinha uma numerosa família de sangue, quando a avó materna foi visitá-la pela primeira vez. A partir dali, passou a ter contato com os parentes três vezes por ano. Da mãe biológica, morta em 2007, ela guarda a imagem de uma mulher doente. “Eu os amo”, diz Natasha. “Mas, como não convivemos, não temos vínculos suficientes para morar juntos.”
Fonte: Revista IstoÉ
Cada vez mais brasileiros que nasceram com o vírus da aids chegam à idade adulta. Mas, ao deixar os abrigos onde passaram a infância e a adolescência, eles sofrem para se adaptar à realidade do lado de fora. A revista IstoÉ, desta semana, traz uma série de depoimentos onde os jovens descrevem as dificuldades enfrentadas por eles. Conheça a seguir a história da jovem Natasha Rebeca.
Despreparados para a vida
SUPERAÇÃO
Natasha foi adotada e está feliz. Mas casos como o dela são exceção
Natasha descobriu que tinha o vírus HIV aos 9 anos. Na escola. “Não cheguem perto. Ela é aidética”, gritou uma aluna histérica, durante o recreio. Apesar de não fazer ideia do que aquilo queria dizer, Natasha desconfiou logo que não era boa coisa porque seus amigos passaram a manter distância. No abrigo onde morava desde pequenina, na região metropolitana de São Paulo, ela havia aprendido apenas que tomava remédios constantemente para combater um “bichinho” que invadira seu corpo. Os remédios eram “do bem” e os “bichinhos” eram “do mal”. Natasha cresceu ouvindo que fora viver naquela casa diferente e cheia de gente porque não tinha família. “Eu me sentia estranha”, lembra. “Uma pessoa sem família não tem história. Não tem identidade.”
O cotidiano atípico incomodava Natasha. Ela compartilhava o quarto e as roupas com uma porção de meninas. Era obrigada a seguir uma agenda rígida e coletiva. Mesmo se não estivesse com fome, tinha de comer nos horários predeterminados. Mesmo se não estivesse com sono, tinha de se deitar junto com as colegas. As “tias” e os “tios” do abrigo, embora carinhosos e prestativos, saíam ao final do expediente ou desapareciam, caso arrumassem outro emprego.
Apegar-se àqueles adultos que iam e vinham, às vezes, doía. “Alguém sempre fazia tudo por nós. Arrumava a cama. Dava remédio. Lavava e passava. Colocava comida no prato”, afirma Natasha. “Tudo era muito dado porque ninguém imaginava que pudéssemos sobreviver. Fomos cuidadas para morrer em paz.”
Quando Natasha nasceu, em 1992, o número de abrigos para soropositivos estava em expansão no Brasil. Era uma resposta, urgente e necessária, de grupos religiosos e da sociedade civil.
“Ninguém queria ficar com essas crianças por causa do medo de infecção e porque não se sabia por quanto tempo viveriam”, diz a infectologista Marinella Della Negra, do Hospital Emílio Ribas. “Muitas ficaram órfãs, outras foram abandonadas em hospitais e acabaram na Febem.” De 1980 até junho de 2010, foram notificados ao Ministério da Saúde 19.203 casos de aids em crianças de até 12 anos. Assim como Natasha, nove de cada dez foram infectadas pela mãe durante a gestação, o parto ou a amamentação – na chamada transmissão vertical.
As estatísticas não detalham quantas crianças resistiram à enfermidade. Mas cerca de 60% dos brasileiros – de todas as idades – diagnosticados no mesmo período estão vivos. “Nosso país se tornou referência mundial no tratamento da aids, a transmissão vertical vem caindo e a sobrevida está aumentando nos últimos anos”, afirma Dirceu Greco, diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde. Entre 1983 e 2007, a probabilidade de uma criança estar viva cinco anos depois de descoberta com a doença saltou de 24% para 86%. “Hoje, não dá para estimar o tempo de vida que um paciente terá”, diz a médica Marinella.
Muitos abrigos realizaram um trabalho notável e ainda cumprem um papel social importante. “O problema é que abrimos casas de apoio, mas fomos frágeis na construção de outras possibilidades, como no processo de saída das crianças e dos adolescentes dessas instituições, no suporte familiar e na preparação dos jovens para o mercado de trabalho”, afirma a psicóloga Elizabete Franco Cruz, pesquisadora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. “Existe uma certa perversidade social porque damos um tipo de assistência que, muitas vezes, mantém essas crianças e adolescentes na posição de alguém que sempre precisará ser cuidado. Devemos lhes oferecer perspectivas de vida, de futuro e condições para que tenham autonomia.”
Elizabete relata que centenas de crianças terminaram abrigadas porque vigora no País a ideia de “família Doriana” e “nuclear”. “Onde estão os avós? Os tios? As famílias estendidas? Muitas vezes, os parentes e até o pai ou a mãe são vistos como incompetentes para assumir essas crianças. Temos de tomar cuidado para não idealizar a família nem o abrigo”, alerta a psicóloga. Pela lei brasileira, soropositivos ou não só podem ficar nessas instituições até os 18 anos. “Com 18 anos e um dia, o adolescente se vê sozinho”, diz Kleber Mendes, um dos coordenadores da Rede de Jovens Vivendo com HIV e Aids. “Então, ele percebe que não foi preparado para a vida real. Que não haverá ninguém para lembrá-lo de tomar remédio, que terá de trabalhar, ficar na fila do SUS. Como foi muito tutelado, em geral, não consegue tomar decisões básicas do dia a dia.” Kleber afirma que os jovens demonstram ter dificuldade de lidar com a liberdade total e repentina.
“Tenho vários amigos que sofreram ao sair do abrigo porque, lá dentro, vivíamos num mundo à parte”, conta Natasha. “No ano passado, dois se perderam totalmente, se envolveram com drogas e foram internados numa clínica de reabilitação. Outros, que saíram antes, morreram.” Natasha teve sorte porque foi adotada por uma funcionária do abrigo – com quem mantinha fortes laços afetivos – e se adaptou à família. Está feliz. Além de pai e mãe, ganhou dois irmãos. “Parece que eu nasci da barriga dela”, alegra-se Natasha. “Foi importante ter sido adotada com 16 anos. Meus pais tiveram de assumir certas responsabilidades, como me levar ao médico e assinar documentos da escola, porque eu era menor. Acho que se viesse agora, com 18, não me sentiria filha deles. Seria como vir só porque não tinha onde morar.”
A rotina de Natasha foi entrando nos eixos devagar. Atualmente, além de estudar artes cênicas e dar aula de teatro numa ONG, ela está correndo atrás da papelada para botar os pais adotivos na certidão de nascimento e mudar de sobrenome. Em breve, excluirá Ferreira Braz e se chamará Natasha Rebeca Gimenes Nascimento.
“Rebeca é um nome bíblico e foi escolhido pela minha mãe”, conta. Natasha só soube aos 7 anos que tinha uma numerosa família de sangue, quando a avó materna foi visitá-la pela primeira vez. A partir dali, passou a ter contato com os parentes três vezes por ano. Da mãe biológica, morta em 2007, ela guarda a imagem de uma mulher doente. “Eu os amo”, diz Natasha. “Mas, como não convivemos, não temos vínculos suficientes para morar juntos.”
Fonte: Revista IstoÉ
Criança e Adolescente, prioridade absoluta!

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